Sobre os Coletes Amarelos, e o que isso tem a dizer sobre nossa realidade?
Por: Varlindo Nascimento; dirigente da pasta de Pesquisa e Tecnologia
Desde meados de novembro uma série de manifestações contra o governo ultraliberal de Emmanuel Macron tem tomado conta das ruas francesas, desde Paris até regiões menores e mais afetadas pelo desmonte do estado social europeu.
O estopim do movimento foi o anúncio da implementação de uma política de encarecimento no preço dos combustíveis, segundo o argumento do governo, a medida tomada atende ao compromisso da comunidade europeia em reduzir gradualmente a emissão de poluentes gerados por combustíveis fósseis. Porém, esse fato por si só não explica o tamanho e o formato da mobilização, é necessário que façamos uma retomada da história recente no sentido de conectar o governo Macron à fúria do povo francês.
Macron foi eleito presidente da França no início de 2017 liderando um movimento “outsider” que se colocava a parte dos espectros da direita e da esquerda. Os dois governos antecedentes à Macron fracassaram aos olhos do povo trabalhador francês, ampliando as desigualdades impostas pelo modelo econômico da União Europeia, claramente direcionado ao atendimento das demandas dos grandes grupos financeiros. Tanto o governo direitista de Nicolas Sarkozy, quanto o do pseudo-socialista François Hollande contribuíram diretamente para o surgimento de uma figura que se intitulava como o “novo” na política, compromissado com um Estado eficiente e livre de amarras ideológicas.
Mas Macron, apesar de jovem, não é novo na política, nem representa uma política nova. Sua origem é o mesmo mercado financeiro que governa a UE, tendo atuado como agente desse mercado e sendo diretamente ligado a família dos Rothschilds, uma dinastia secular que governa governos em todo mundo. Depois de ocupar o ministério de Hollande, Macron “pulou do barco” para desassociar sua imagem do fracasso do governo ante a opinião pública, lançando logo em seguida uma espécie movimento (Em Marche), que em poucos meses capitalizou força eleitoral suficiente para a disputa presidencial.
Logo após sua eleição, num contexto de alta abstenção eleitoral e de medo por parte significativa do eleitorado com a possibilidade de ascensão do partido nacionalista de caráter ultra xenófobo, materializado na candidatura de Marine Le Pen, uma das primeiras medidas do novo presidente foi a supressão do imposto sobre grandes fortunas, um claro aceno ao setor da economia de sua origem e que viabilizou sua candidatura.
Uma série de outras medidas impopulares encheram o copo da paciência popular, transbordando com a política de encarecimento dos combustíveis que levou a tal Revolta dos Coletes Amarelos. As mobilizações ganharam esse nome por terem sido alavancadas por trabalhadores do setor de transportes, os quais são obrigados a usar um colete refletivo amarelo como forma de segurança nas estradas.
A insatisfação dos trabalhadores se deu pela simples percepção de que estão sendo obrigados a pagar a conta pela isenção dada por Macron aos mais ricos no momento em que acabou com a taxação sobre as fortunas. Em paralelo a isso, a vida nas partes mais periféricas e nas províncias rurais do território francês tem sido a muito tempo pauperizadas pelo processo de desindustrialização, o que acarretou em um refluxo populacional, seguido de uma diminuição drástica na oferta de serviços públicos, os quais, diferentemente do Brasil, são acessados por grande parcela da classe média francesa, obrigando esse contingente a aumentar seu nível de deslocamento territorial.
A junção desses fatores acarreta numa maior dependência dessas populações pelos meios de transporte público e individual que terão seu acesso encarecido, ao mesmo tempo em que a falta de empregos, os reduzidos salários e a supressão de uma série de políticas sociais de auxílio aos mais pobres grassam a parte mais pobre da população. Por essa razão, o epicentro desse movimento ocorreu nas áreas mais à periferia do país, ganhando cada vez maior proporção até chegar a Paris.
Diante desse quadro, alguns analistas brasileiros têm procurado tratar o que tem acontecido na França em comparação com momentos de ebulição social ocorridos no Brasil, principalmente com as chamadas Jornadas de Junho, em 2013, período crítico do governo progressista de Dilma Rousseff.
Tal qual naquele caso, o que tem acontecido na França, pelo menos de início, se coloca como livre de qualquer liderança orgânica, seja de partidos ou movimento sindical, o que é compreensível, partindo do pressuposto de que a própria eleição de Macron foi o resultado da despolitização do debate público pelo discurso do “faça você mesmo” e da atuação tímida de um movimento sindical corporativo e de resultados, o qual, num contexto em que a população não enxerga resultados positivos do ponto de vista financeiro, acaba perdendo sua função.
Por sua vez, é importante fazermos as considerações sobre as diferenças do que tem ocorrido na França e o que ocorreu cinco anos atrás no Brasil, desde os motivos até os primeiros resultados que conseguimos interpretar. Primeiro, precisamos partir do ponto de que as “classes médias” de Brasil e França partem de interesses completamente diversos. Enquanto no Brasil ela saiu às ruas exatamente para contestar a ascensão dos de baixo, o que diminuía seu status social e seu poder de exploração sobre as classes pauperizadas, na França, a classe média trabalhadora tem se mobilizado em função da degradação real e contínua que sente na própria pele, fruto do desmanche do estado de bem-estar social resultante do pós-guerra, alternativa do capitalismo aos trabalhadores no sentido de impedir a ascensão do modelo socialista.
Essa correlação de forças apresentada deixou de existir após o colapso do modelo soviético, o que abriu a brecha necessária para que o modo capitalista de produção exibisse também na Europa sua face mais original, que é a reprodução do acúmulo de capital nas mãos de uma pequena minoria que não produz e controla todos setores decisivos da sociedade, incluindo a opinião pública, através dos meios de comunicação, e os governos, como no caso do banqueiro Macron. Esse formato é o que os Estados Unidos impõem desde a primeira metade do século XX ao seu quintal, ou seja, a América Latina, o que sequer permitiu à classe trabalhadora dessa parte do globo se sentir perdedora de direitos sociais promovidos por políticas públicas de Estado.
Outra diferença significativa que influência diretamente as interpretações diz respeito ao fato de que, enquanto no caso brasileiro houve uma rápida apropriação das pautas pela direita, mesmo que de forma forçada pelos instrumentos de controle social, na França, essa uma questão que ainda está em disputa, e não aparenta de forma nenhuma que será apropriada de forma absoluta por setores conservadores e reacionários. Estudantes, sindicatos e movimentos da sociedade organizada já estão absorvidos no conjunto dos manifestantes.
É obvio que as forças de desmobilização e apropriação de discursos que atuaram no Brasil também atuam no caso francês. A grande mídia e suas agências de notícia, as redes sociais controladas pela mesma lógica de mercado e a política de austeridade que impera também na Comunidade Europeia não deixarão de exercer força suficiente no sentido de desviar a rota que tem levado Macron a tomar decisões paliativas que fogem à política para a qual foi “contratado” pelos donos do poder às custas do suor e da vida dos franceses.
Por fim, fazendo um exercício de antevisão do futuro, logo estaremos nós brasileiros aprofundando um debate semelhante. Um presidente eleito que se apresentou como um antissistema, mesmo sendo deputado a quase três décadas, e que tem a mesma agenda de pauperização da vida do povo com aumento das garantias de lucro ao mercado financeiro. Resta saber qual será o tempo de ilusão das massas e qual o tempo de adesão da classe média a essa pauta. Aos movimentos de organização e resistência de classe cabe a organização suficiente, desde já, no sentido de acumular forças para o embate que será inevitável.